terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SER OU NÃO SER CHARLIE? SER OU NÃO SER CIVILIZADO?

"...assim, mal dividido,
esse mundo anda errado:
que a Terra é do homem,
não é de Deus nem do diabo"
(Sérgio Ricardo, sertão vai virar mar)

Apollo Natali, meu amigo há décadas e ex-colega de redação na Agência Estado, é um dos grandes jornalistas e dos melhores seres humanos que conheço. Sua opinião terá sempre lugar e vai ser sempre respeitada nos meus espaços virtuais, daí eu ter concordado imediatamente com o pedido de publicação do artigo Não sou Charlie (acesse aqui), expressando seu descontentamento, como religioso, com filmes e publicações que lhe parecem inconvenientes.

Também tenho, claro, algumas palavras a dizer. Não se nega aos crentes o direito de sentirem-se ofendidos, mas vale lembrar que nenhum deles é obrigado a ler o Charlie Hebdo ou ver A última tentação de Cristo. Os que o fizeram, provavelmente, foi em função do falatório e das polêmicas, para verificarem se era ou não verdade o que se dizia a respeito de ambos --já predispostos, portanto, à indignação.

No Ocidente, com a separação entre Igreja e estado, sua única iniciativa possível contra a fita era recorrerem aos tribunais. Felizmente, países contemporâneos à própria época não censuram filmes por atentarem contra a imagem de personagens históricos que alguns consideram sagrados, outros não. E já vão longe os tempos em que católicos queimavam bruxas e lançavam cruzadas sanguinárias contra os infiéis, então nenhuma besta-fera foi encher de balas o diretor Martin Scorcese ou o ator Willem Dafoe (que interpretou Cristo)

Os responsáveis pelo semanário, por sua vez, jamais fizeram o que seria, realmente, uma provocação: providenciar traduções e lançar edições direcionadas para países e contingentes humanos que vivem no século 21, mas continuam com a cabeça no século 6.  

A quais maometanos antes incomodavam, de verdade, os 60 mil exemplares do Charlie Hebdo comercializados semanalmente na Europa? Pouquíssimos, decerto. O que houve não foi nenhuma reação furibunda de indivíduos emocionalmente primitivos que estariam sentindo-se agredidos em sua fé, mas sim uma sanguinária e calculista demonstração de força de terroristas clássicos (aqueles que, como francos-atiradores dissociados das massas e sem estarem contribuindo para nenhum ascenso revolucionário, utilizam a violência apenas para punirem e intimidarem seus inimigos), os quais garimparam diligentemente, até encontrarem, um alvo condizente com a mensagem que queriam passar.

Terroristas clássicos obtêm muitos holofotes, mas sua pirotecnia quase sempre levanta a bola para o inimigo marcar pontos, além de eventualmente ter consequências catastróficas. No primeiro caso está, p. ex., a tentativa de matarem o czar Alexandre III em 1897, que redundou na execução do irmão do Lênin, Alexandre Ulianov, e de quatro de seus companheiros, além, é claro, de um previsível agravamento da repressão política.

E no segundo, tanto o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando por parte do mão negra Gravilo Princip em 1914, que conduziu aos horrores da 1ª Guerra  Mundial; quanto o atentado ao WTC em 2011, responsável pela pior escalada global de estupro dos direitos humanos e perseguição a inocentes que os cidadãos de origem árabe já sofreram.

Marxistas e anarquistas há muito descartaram e se dissociaram do terrorismo clássico. Nos últimos tempos, contudo, contingentes desnorteados de esquerda, trocando a coerência com seu amadurecimento político que já haviam atingido pela mais tacanha realpolotik, vêm cometendo uma dupla heresia (este termo retrô cai como uma luva no atual contexto...):
  • a de defenderem fundamentalistas religiosos que não querem, de maneira nenhuma, fazer a humanidade avançar para além do capitalismo, mas sim fazê-la retroceder para antes do capitalismo, ou seja, para as trevas medievais; e
  • a de defenderem terroristas clássicos e seus monumentais tiros pela culatra, tornando-se parceiros dessas derrotas e associando estupidamente sua imagem a carnificinas que qualquer cidadão isento repudia.
Caem no vazio suas tentativas de relativização de um episódio que foi, isto sim, totalmente bestial e absolutamente condenável. Quando alguém é chacinado por dá-lá-aquela-palha, buscar justificativas para o crime soa hipócrita e aberrante. Uma das diferenças entre nós e os animais é que, ao contrário dos touros, não temos nenhuma compulsão irresistível de destruir um semelhante apenas porque veste vermelho.

Reconheço e até admiro a boa fé de religiosos como o Apollo Natali, mas não perdoo os esquerdistas que abdicam do seu compromisso fundamental com a civilização, passando a raciocinar como simplórios torcedores de futebol ("Se é contra os EUA, a Europa e Israel, vale tudo, até gol de mão nos acréscimos, em posição de impedimento"...).

Por último: religiosos de ocasião e por conveniência à parte, como fica a questão das pessoas devotas que, sinceramente, sentirem-se insultadas em sua fé?

Ora, sendo nosso estado laico, homens tidos como santos são encarados, por quem não é religioso, como personagens históricos (ou fictícios) iguais a quaisquer outros. Não cabe nenhuma forma de censura ou perseguição dos poderes públicos a quem trata Cristo ou Maomé da mesma forma que, digamos, Vlad Dracul e Hitler (os quais, aliás, têm lá seus defensores, mas 99,9% do que aparece sobre eles em filmes e semanários é extremamente negativo).

E, como a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos no Brasil do século 21, só resta aos ofendidos o caminho dos tribunais e de iniciativas visando ao convencimento da opinião pública (desde anúncios pagos até campanhas virtuais incentivando o boicote aos blasfemos).

No fundo, o que os religiosos pretendem é que se conceda um tratamento diferenciado para quem eles consideram diferente. Mas, agnósticos, ateus e mesmo religiosos de outras confissões podem discordar (um neopentecostal admitiria, p. ex., Oxalá como similar a Jesus Cristo?). Então, não faz nenhum sentido, em termos legais ou morais, pretender que a imprensa não os ridicularize como ridiculariza outros personagens históricos do passado e do presente.

Podemos até achar que a irreverência é exagerada no seu todo, que a nossa imprensa pega pesado demais com Paulo Maluf e Jair Bolsonaro, ou que a francesa pega pesado demais com Jean-Marie Le Pen e Maomé. O que não podemos é aceitar como válidos os piores achincalhes a Bolsonaro, Maluf e Le Pen e, ao mesmo tempo, não admitir a mais inofensiva irreverência com Maomé.

Caso contrário, para que terão servido, afinal, 1945 e 1985 aqui, o iluminismo e a grande revolução lá? E de que valeu tantos resistentes morrerem lutando contra os nazistóides daqui e contra os nazistas de lá? Pois eram todos expressões da intolerância, fanatismo e autoritarismo inseparáveis da tese da intocabilidade dos homens santos...

Além do mau humor e dos maus bofes, claro!

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