Serenidade" de um lado, "falas desconexas" do outro. |
O jornalista e historiador Elio Gaspari é um homem de esquerda formado na cultura do velho PCB. Como tal, manteve-se bem distante das ilusões armadas e hoje não crê nem mesmo nas ilusões desarmadas. Move-o, contudo, um elogiável sentimento de compaixão e solidariedade para com o povo sofrido, daí ter assumido posição contrária ao Governo Dilma, principalmente no catastrófico segundo mandato.
Em artigo recém-publicado, ele compara com sapiência e sarcasmo os estilos pessoais:
"Antes mesmo de completar cem dias, Michel Temer conseguiu dar estabilidade ao seu governo. Começou da pior maneira possível, com um ministério pífio e contaminado, cercado de suspeitas e de ligações inconvenientes. A mágica tem um nome: calma, sangue frio ou mesmo serenidade.
...A estabilidade trazida pela mágica da calma foi ajudada pela esperança que a blindagem de Henrique Meirelles levou para o Ministério da Fazenda. Por enquanto, na panela da ekipekonomica há muito pirão e pouca carne. Felizmente, o mercado compra esperança e o novo governo mostrou que, com o afastamento dos pedalantes, pior a coisa não fica.
...Temer também teve sorte. O PT ainda não acordou da pancada do início do processo de impedimento e Dilma Rousseff percorre plateias amigas cada vez menores, com falas cada vez mais desconexas. Na última, comparou o seu infortúnio aos acontecimentos da Turquia".
Meirelles: Lula gostava, Dilma enxotou, Temer foi buscar. |
Afinal, durante os 16 meses do seu segundo mandato ela nem sequer conseguiu governar. Quando estava nos estertores, desistiu até de tentar. Foi ultrapassada pelos acontecimentos e acabou deixando o país e a economia à deriva, enquanto se dedicava, exclusiva e obsessivamente, à defesa vã do seu mandato.
Quanto à gradativa melhora das perspectivas econômicas desde que ela foi afastada, é um fato. Não apenas em razão da incompetência abissal de Dilma, que deu significativa contribuição para atingirmos o terrível patamar de 11 milhões de brasileiros na rua da amargura (desemprego elevado haveria de qualquer maneira, mas os erros bisonhos de política econômica o maximizaram), como também porque o modelo populista encarnado no PT estava esgotado, cá como noutros países sul-americanos.
Todos coincidiram no ponto de partida: a tomada de governos pela via eleitoral. Depois, alguns foram mais longe na tentativa de tomada progressiva do estado, outros acabaram detidos no meio do caminho.
O certo é que não houve uma revolução clássica em nenhum deles. Os explorados não se organizaram para exercer o poder, foram organizados para apoiar governantes caudilhescos. Marx sempre quis torná-los protagonistas da História, não vê-los relegados ao papel de objetos de homens providenciais, servindo de peões no tabuleiro do seu jogo, cujo objetivo final nunca foi o xeque-mate, mas sim a mera perpetuação no poder.
Dez anos depois, só Morales continua no poder. |
Depois, porque o grande homem costuma temer a sombra de um sucessor e geralmente favorece o mais medíocre dos seus cortesãos, o que acaba colocando cavalgaduras como Maduro numa posição à qual jamais deveriam ser alçados.
No Brasil, o governo petista nasceu atrelado aos compromissos que assumiu em 2002 com o poder econômico, de submeter-se a ele na tomada de decisões macroeconômicas, contentando-se em administrar as miudezas do varejo.
Enquanto a conjuntura internacional favorecia as commodities brasileiras, a receita funcionou. O grande capital continuou com a parte do leão (sem um mínimo de simancol, Lula se vangloriava de que os banqueiros nunca haviam lucrado tanto quanto nos seus governos!!!) e ainda sobrava uma graninha para aumentar a quota de migalhas dos explorados, por meio do bolsa-família e outros mecanismos de transferência ínfima de renda para os pobres.
Quando a maré virou no exterior e o cobertor ficou curto para continuar cobrindo tanto as cabeças garbosas da burguesia quanto os pés sofridos dos coitadezas, Dilma resolveu desconsiderar em certa medida o pacto firmado por seu padrinho com Mefistófeles e tentar fazer a economia pegar no tranco, seguindo o figurino do velho nacional-desenvolvimentismo (ou seja, com os investimentos estatais a empurrando), de forma a manter e talvez ampliar as conquistas sociais das duas gestões anteriores.
A esquerda já deveria ter começado a mudar em 2013 |
Os capitalistas também não gostaram da brincadeira e, como quem manda no capitalismo são eles, despacharam Dilma com um piparote, fazendo-a desabar no chão do Palácio da Alvorada, do qual será também despejada no mês que vem.
Não lamento, porque é difícil enxergarmos alguma vantagem em ser petista quem gerencia o capitalismo para os capitalistas, ajudando a mistificar os explorados. Mil vezes melhor a esquerda permanecer fora do poder, lutando para conquistá-lo de forma digna; ou seja, sem abdicar de sua verdadeira identidade, nem trocá-la por uma versão light e, muito menos, negociar a alma em acordos podres!
Então, enquanto muitos (principalmente os que perderam suas escandalosas boquinhas) veem a queda de Dilma como uma desgraça, eu a vejo como mais uma oportunidade para construirmos uma esquerda de verdade, revolucionária, no Brasil. Aquela que deveríamos ter começado a forjar tão logo terminou a ditadura de 1930-1945, e depois a de 1964-1985.
Agora que o populismo de esquerda desmoronou e se desmoralizou por completo, temos uma terceira chance para fazer direito a lição de casa, quiçá a última, pois a alternativa para nós neste instante é retomada revolucionária ou marcha para a irrelevância.
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